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Há quase 200 anos, um homem sofreu um acidente de trabalho que mudou o rumo da neurociência.

            Phineas Gage era um jovem americano comum de 25 anos, até que, em 1848, uma explosão acidental durante a construção de trilhos colocou uma barra de ferro de um metro atravessando seu crânio de forma bizarra. Mas ele não morreu. Phineas passou por tempos difíceis durante a recuperação após a remoção e quase faleceu de um abcesso (infecção na ferida, que de acordo com os registros chegou a ter 250mL de pus, líquido resultante do metabolismo de bactérias, fragmentos de células e sangue). Após quase três meses sob cuidados médicos, Phineas voltou para casa dos pais e começava a retornar para as tarefas do cotidiano, aguentando meia jornada de trabalho.

The skull of Phineas Gage, at Warren Anatomical Museum at Harvard  University.

Imagem da reprodução do acidente e foto do crânio. Fonte: philosophymatters.org reprodução de Pinterest.

            Entretanto, a mãe dele logo notou que parte da memória dele parecia prejudicada, apesar de segundo os relatos do médico a memória, capacidade de aprendizado e força motora de Gage ter sido inalterada. Com o passar do tempo, o comportamento de Gage já não era mais o mesmo de antes do acidente. Gage parecia ter perdido parte do tato social, e se tornou agressivo, explosivo e até mesmo profano. O antes doce rapaz, se tornou inconsequente e rude e abandonara os planos para o futuro, não tendo constituído família. Ele não conseguiu recuperar o emprego, e por anos se tornou uma espécie de museu ambulante, afinal como um homem tem o cérebro atravessado por uma barra e ousa sobreviver? Sem maiores danos? Era um caso tão notório, que por dois anos a comunidade médica se recusava em acreditar! Como o caso ocorreu no interior, o médico que acompanhou Phineas, John Harlow, teve que atestar a autenticidade perante advogados. John e Phineas também viajaram para Boston rumo a faculdade de medicina para expor o caso.

            Apesar de não ter constituído família, Phineas foi um homem independente e funcional, tendo ido trabalhar como cocheiro no Chile. Os relatos indicam que foi através do trabalho, que suas habilidades sociais retornaram e ele estava cada vez mais reabilitado ao convívio. Em 1860, Phineas adoece, volta para a casa da mãe após começar a ter quadros convulsivos e falece em maio do mesmo ano. A família Gage enviou ao médico Harlow o crânio de Phineas Gage após a exumação bem como a barra de ferro. Hoje, o crânio está exposto no Warren Anatomical Museum da Universidade de Harvard.

Imagem da reconstrução mais recente do caso de Phineas Gage. Fonte: Van Horn JD et al., 2012. 

            O caso de Phineas Gage deu material para dois fortes temas de pesquisa e debate no século seguinte: a personalidade como produto do cérebro com as relações mente-cérebro e funções localizadas em áreas específicas do cérebro. Afinal, se um acidente é capaz de mudar como uma pessoa age no cotidiano por danificar o cérebro, a personalidade está então armazenada na cabeça. Alguns afirmam que o caso de Gage serviu como rompante para o desenvolvimento da psicocirurgia e até da lobotomia, entretanto sem evidências concretas. Foram os relatos do caso de Phineas que voltaram a atenção de cientistas para o lobo frontal como região associada a características da personalidade, além da possibilidade de sobrevivência após uma lesão tão brusca que de acordo com o médico, “derramava cérebro” quando ele tossia.

            O caso de Phineas Gage ganha atenção principalmente com o fim da frenologia, uma pseudociência que buscava investigar a forma física do crânio e do cérebro e, a partir desses dados, atribuir o quão inteligente ou capaz uma pessoa poderia ser. A frenologia foi muito usada para sustentar o racismo e ideologias de supremacia branca, mas com o aumento de evidências de que não passava de pseudociência (ou seja, com as posteriores análises dos relatos médicos do acidente e sobrevida de Phineas, se instalava a “Era Localista” da neurociência. Antes do caso de Phineas, Herbert Spencer já propunha que cada região do cérebro poderia ter uma designada função e dizia “Localização da função é a lei de toda organização”. Entretanto, devido as poucas evidências e relatos concretos sobre Phineas, os que eram contra os localistas também se aproveitaram do caso para promover que “Phineas teria tido a destruição dos centros da fala sem nunca ter tido prejuízo de linguagem ou fala”.

            Atualmente, o acidente de Phineas já foi simulado em computadores por pelo menos dois grupos de pesquisa. Em 2004, a reconstrução apontava que o dano teria sido nos dois “lados” do cérebro, mas em uma versão 3D mais recente apenas o lado esquerdo foi afetado. A análise mais recente, em 2012, estima que ele perdeu cerca de 15% de massa cerebral, tendo a barra de ferro levado parte do córtex e parte dos núcleos internos do cérebro. Isso justifica as alterações de comportamento e perdas de memória, afinal foram danificadas regiões como o córtex pré-frontal que é parte importante na tomada de decisões e planejamento.

            E o estudo do cérebro? Hoje sabemos que, assim como uma andorinha só não faz verão, apenas uma região não executa sozinha toda uma função. O cérebro é todo conectado por um motivo: integração. Cada região terá aquela atividade em que é insubstituível, mas irá receber informações de outras partes do cérebro e também irá participar de outros processos e funções. Um exemplo são os núcleos da base: um grupo de regiões essenciais para a locomoção, mas também para processar o prazer.

 

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Referências

Van Horn JD, Irimia A, Torgerson CM, Chambers MC, Kikinis R, et al. (2012) Mapping Connectivity Damage in the Case of Phineas Gage. PLoS ONE 7(5): e37454. doi:10.1371/journal.pone.0037454

Damasio H, Grabowski T, Frank R, Galaburda AM, Damasio AR. The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a famous patient. Science. 1994 May 20;264(5162):1102-5. doi: 10.1126/science.8178168. Erratum in: Science 1994 Aug 26;265(5176):1159. PMID: 8178168.