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A ciência é um dos vários métodos para entender e se relacionar com o mundo. Como qualquer outro método, a ciência é incapaz de prover verdades absolutas, porém, em momentos como os que estamos vivenciando, é muito comum vermos pessoas dizerem que acreditam e confiam na ciência. No texto de hoje vamos tratar um pouco das suas limitações, de como a ciência pode ser suscetível a crenças pessoais e das consequências disso, focando na aplicação do método científico às áreas da saúde.

       Para começar, é importante entender como funciona o método científico nas pesquisas quantitativas (que tem números como resultado). Para realizar uma pesquisa tudo começa com muito estudo do que já está disponível e a formulação de uma hipótese. Para decidir o quanto essa hipótese se aproxima da verdade, elaboramos uma pergunta de pesquisa, que deve ser respondida a partir de um ou mais experimentos. Em seguida, realizamos esses experimentos, analisamos os resultados e a partir deles afirmamos a probabilidade de a hipótese estar correta ou errada, com uma margem de erro conhecida. Aí temos uma questão chave do método científico: só poderíamos afirmar algo com certeza absoluta ao analisar toda a população, e como isso não é possível, sempre utilizamos o que chamamos de amostra – um número de pessoas que representa essa população. Por isso, às vezes, encontramos na amostra um efeito que não existe na população geral, e o resultado mais importante dos artigos científicos é justamente a probabilidade disso acontecer (valor de p) [1].

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Imagem de pessoa com sacola na cabeça e a frase "Não sou tapado! Confio na ciência".

Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

       Partindo para questões mais pessoais, a escolha dos temas de pesquisa e as evidências científicas inicialmente disponíveis já não partem da neutralidade, uma vez que estamos todos sujeitos à influência de nossas crenças, culturas, do tempo em que vivemos e das demandas do capital. Um exemplo disso foi o aumento no número de estudos avaliando a eficácia de medicamentos antiparasitários (como a ivermectina) na prevenção de infecções virais (como o novo coronavírus) no último ano. Se essa demanda não existisse a partir da pandemia de Covid-19, não haveria tantos pesquisadores escolhendo esse tema. Pensar essas questões é importante porque se estudamos mais sobre algum assunto, temos mais informações e resultados sobre ele. Além disso, existe o que chamamos de viés de publicação [2], que é a tendência de as revistas científicas publicarem mais artigos em que foram encontrados resultados “positivos” (diferenças entre grupos, efeito da intervenção ou medicamento estudado etc.) do que “negativos”, produzindo a sensação ilusória de que determinado assunto é naturalmente mais relevante, ou que determinado experimento sempre dará o mesmo resultado. 

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Imagem das barras que representam o número de artigos publicados por ano, disponíveis no PubMed, ao pesquisar os termos “coronavirus AND ivermectin”. Fonte: PubMed.

       Como consequência da falta de neutralidade, temos muitas teorias e experimentos em que verdades ditas científicas foram usadas para reforçar crenças prévias. Isso também pode ser encontrado como “viés de confirmação” [3]. Um dos maiores exemplos é o conjunto de ideias que surgiram a partir do século XIX com o intuito de comprovar a suposta inferioridade de corpos e culturas negros, hoje conhecidas como “racismo científico” [4].

       Outro ponto importante é que em determinados tipos de estudos, as crenças individuais dos pesquisadores podem, inconscientemente, produzir resultados. É por esse motivo que existem os chamados ensaios clínicos randomizados duplo-cego (dos participantes e dos pesquisadores) para testar remédios antes que eles estejam disponíveis para venda. Porém, este é um recurso específico para testar tratamentos e que, portanto, não pode utilizado em todas as pesquisas. 

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Fotografia em preto e branco de uma sala de aula. Fonte: Picryl

       Ainda sobre influências inconscientes, existe o que chamamos de vieses implícitos (ou vieses inconscientes) [5], que podem ser definidos como associação inconsciente de determinadas identidades com alguma característica com base em preconceitos, crenças culturais e estereótipos. Um exemplo disso pode ser a associação inconsciente de que mulheres são menos competentes em ciências exatas. Pesquisadores, antes de qualquer coisa, são pessoas de carne e osso, por isso carregam consigo os elementos mais relevantes da sua educação – e podem reproduzi-los sem sequer perceber. Reconhecer isso, nada mais é do que reconhecer que todo indivíduo que fala (ou produz conhecimento), fala a partir do local que ocupa no mundo, com todas as suas bagagens – e isso certamente reflete na produção científica. Essa é a verdadeira noção de “local de fala”, diferentemente de servir para legitimar quem tem ou não direito a brigar na internet [6].

       O local de fala e a identidade de quem pesquisa se tornam questões importantes uma vez que o acesso à educação e às universidades é muito limitado, resultando em um cenário no qual o perfil dos(as) cientistas não é muito diverso. Além disso, o perfil dos voluntários(as) de pesquisa também é bastante homogêneo, resultando em um “sujeito universal de pesquisa” a partir do qual tiramos conclusões que futuramente são aplicadas para toda a população. Muitas vezes a distribuição de classe social, escolaridade, etnia etc. nos estudos não condiz com a realidade da população do país, abrindo espaço para exclusão ainda maior de grupos marginalizados (já que a menor representação de uma população em uma amostra gera menos informações sobre ela). Alguns desses elementos costumam aparecer em uma sessão dos artigos científicos que recebe o nome de “limitações”. Outras são tão sutis, fazendo parte de quem somos e da nossa forma de pensar, que passam despercebidas. 

       Com tudo isso em mente, é impossível negar que a construção do conhecimento a partir do método científico é extremamente complexa e, apesar de ser um instrumento importante para interagir com mundo que nos cerca, possui diversas limitações. Se depois desse texto você está se perguntando por que continuar fazendo/acreditando na ciência, te convido a acompanhar o texto que sai na próxima semana, no qual discuto porque, mesmo com todas as devidas críticas, a ciência ainda é a melhor alternativa que temos.

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Este texto foi escrito por Natália Simionato, biomédica formada pela Universidade Federal de São Paulo e Mestre em Ciências pelo programa de pós-graduação em Psicobiologia pela mesma universidade. Estuda os efeitos da discriminação de gênero no trabalho sobre a saúde mental de mulheres.

 

Referências

1. https://www.scielo.br/j/jbpneu/a/SWk5XsCsXTW7GBZq8n7mVMJ/?lang=pt&format=pdf

2. https://www.htanalyze.com/metanalise/vies-de-publicacao/

3. https://oxfordbrazilebm.com/index.php/vies-de-confirmacao/

4. http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/noticias/o-lado-sujo-da-ciencia-e-a-consolidacao-do-racismo-cientifico/

5. https://blog.eureca.me/vies-inconsciente/ 

[6] https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/04/08/o-que-significa-lugar-de-fala-conceito-nao-e-uma-forma-de-calar-as-pessoas.htm