A menos que você tenha passado os últimos 6 meses em uma caverna, deve saber que a COVID-19 nos colocou na maior crise global de saúde do último século. Por se tratar de uma doença altamente contagiosa, a maioria das cidades do Brasil e do mundo adotou medidas de distanciamento social através do fechamento de escolas e comércios. Mas isso também não é nenhuma novidade, né? Por estarmos forçados a ficar em casa, para muitos de nós veio o famoso home office. Estamos sendo obrigados a conciliar todos os impactos (materiais e psicológicos) que essa pandemia tem, nos adaptarmos a uma realidade totalmente nova e ainda seguirmos trabalhando. Com isso, surgem algumas perguntas: É possível continuar produzindo como antes? Como ficamos nós, cientistas, no meio disso tudo? O trabalho de pesquisadores homens e mulheres vem sofrendo o mesmo impacto? Se essas questões te despertam curiosidade, vem comigo que até o final desse texto você terá algumas respostas.

O trabalho de um cientista vai muito além dos experimentos de laboratório, e se você for das ciências humanas geralmente essa nem é uma realidade. Existem atividades da rotina de um pesquisador que podem ser realizadas à distância, como por exemplo a escrita dos nossos estudos na forma de artigos acadêmicos (que é um dos principais indicadores de produtividade). Para além de toda a questão de saúde mental (que é assunto para outro texto), já existem evidências mostrando que a quarentena está prejudicando a produtividade de cientistas mulheres. Em uma pesquisa realizada pelo projeto Parent in Science, menos mulheres relataram estar conseguindo desempenhar seu trabalho remotamente, comparando tanto homens e mulheres que têm filhos quanto os que não tem [1]. Lembra da escrita de artigos acadêmicos? Já é possível perceber o impacto dessa dificuldade em exercer o trabalho à distância no número de artigos enviados por mulheres para revistas científicas [1] [2] [3], sendo que o assunto já foi discutido em duas das maiores revistas científicas: Science [4] e Nature [5]. Mas por que isso está acontecendo?

Mães na quarentena | Revista Pesquisa Fapesp

Fonte [3] e Parent in Science

Uma das possíveis explicações é a divisão sexual dos trabalhos e cuidados. Esse nome complicado nada mais é do que os papéis de gênero (meninos vestem azul, meninas vestem rosa, lembra?) influenciando os lugares que homens e mulheres ocupam na sociedade: os homens geralmente são responsáveis por atividades chamadas de produtivas, como o trabalho assalariado (mais comumente em áreas de negócios e infraestrutura) e as mulheres costumam desempenhar atividades chamadas de reprodutivas, que são as atividades domésticas, de limpeza e cuidado com pessoas (crianças, idosos e doentes). Isso não significa que os homens não fazem trabalhos domésticos e que as mulheres não desempenham atividades assalariadas, mas é muito mais comum vermos homens e mulheres responsáveis por atividades condizentes com o papel tradicional do seu gênero. 

Qual o problema disso? Com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, isso gerou o que chamamos de dupla/tripla jornada de trabalho. Ou seja: além de terem um emprego assalariado, as mulheres ainda fazem a maior parte do trabalho doméstico e, quando mães, são as maiores responsáveis por cuidar dos filhos. É claro que os homens fazem uma parte dessas atividades, mas um estudo do IPEA com dados de 2001 a 2015 mostrou que as mulheres no Brasil ainda fazem em média 18 horas a mais de trabalho doméstico por semana do que homens [6]. Tratando-se de cientistas, evidências sugerem que homens têm maior tendência a ter parceiras que não trabalham fora de casa, enquanto que mulheres tendem a ter parceiros que também são acadêmicos, e mesmo nesse caso elas fazem mais trabalho doméstico que seus parceiros [5]. Além dos cuidados com a casa e com filhos, que são as explicações mais comuns nas reportagens sobre a produtividade das pesquisadoras durante a quarentena, existe sobre as mulheres uma expectativa de cuidado. Explico: é esperado que as mulheres desempenhem o papel de verificar o bem-estar de familiares e pessoas próximas, e de cuidar dessas pessoas, seja quando adoecem ou quando precisam de algum tipo de suporte. Naturalmente, com a pandemia e todos os estresses e dificuldades que a acompanham, esses processos se intensificaram. Antes de cientistas somos mulheres e, apesar das particularidades de nossa profissão, é impossível acreditar que essa realidade não nos atingiria, uma vez que agora não podemos acessar nossas redes de apoio: creches e escolas estão fechadas, contato com familiares e amigos deve ser evitado, babás e empregadas domésticas foram dispensadas. A má distribuição dos trabalhos reprodutivos somada à impossibilidade de terceirizá-los (muitas vezes para outras mulheres menos privilegiadas) é algo que certamente impactou a produção das cientistas nesse período.

O que podemos fazer para mudar essa realidade? Pensando a longo prazo, eu apostaria na educação das próximas gerações incentivando meninos e meninas igualmente a terem responsabilidade pelas tarefas domésticas. Hoje em dia, além de meninas serem tradicionalmente incentivadas com brincadeiras que simulam o trabalho doméstico (brincar de boneca ou de casinha são exemplos), desde novas mais meninas são responsáveis por tarefas domésticas do que meninos de mesma faixa etária [7]. Dados da Fundação das Nações Unidas para Infância - UNICEF mostram que meninas de 5 a 9 anos já dedicam cerca de 30% a mais de seu tempo a essas tarefas comparando com meninos, sendo que com o aumento da idade essa diferença aumenta ainda mais [8]. Porém, educar gerações futuras é uma proposta que deve gerar frutos que, com muita sorte, só a geração das nossas netas vai colher... 

Meninas, trabalho doméstico e escola | cientistasfeministas

 Fonte: Relatório “Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e violências” [7]

Para as mulheres cientistas de hoje existem iniciativas como a Maternidade no Lattes [9], além de alguns concursos públicos usarem da autonomia que possuem para adotarem medidas compensatórias. Além disso, uma carta publicada por pesquisadoras brasileiras na revista Science sugere alterações nos prazos para pedidos de verba e envio de relatórios, e que as agências financiadoras criem programas voltados para acadêmicos com filhos [4]. Outra possibilidade seria estabelecer critérios diferentes para contratações e promoções, amenizando os efeitos que essas desigualdades causaram na produtividade das cientistas. Por fim, um coletivo britânico publicou uma carta aberta solicitando que os conselhos editoriais de revistas acadêmicas reconheçam e tomem medidas para atenuar o quanto essa pandemia está impactando a produção das pesquisadoras [10]. É importante apoiarmos as medidas existentes, nos informarmos e organizarmos para pensar novas estratégias para pressionar nossas Universidades e agências de financiamento por mais políticas que promovam equidade de gênero na ciência.

  

Esse texto foi escrito por Natália Simionato, biomédica formada pela Universidade Federal de São Paulo e mestranda no programa de pós-graduação em Psicobiologia pela mesma universidade. Estuda os efeitos da discriminação de gênero no trabalho sobre a saúde mental de mulheres.

 

Fontes:

[1] https://revistapesquisa.fapesp.br/maes-na-quarentena/

[2] http://www.dmtemdebate.com.br/mulheres-pesquisadoras-parecem-estar-submetendo-menos-artigos-cientificos-durante-a-crise-de-coronavirus-nunca-vi-nada-parecido-diz-um-editor/

[3] https://oglobo.globo.com/celina/submissao-de-artigos-academicos-assinados-por-mulheres-cai-durante-pandemia-de-coronavirus-24428725

[4] https://science.sciencemag.org/content/368/6492/724.1

[5] https://www.nature.com/articles/d41586-020-01294-9?fbclid=IwAR3XukguK_blenND7fKrYDlJs-_W2SJDAaU1_6LM7SnUcrJyf8tZZ8120Sc

[6] https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34450

[7] http://primeirainfancia.org.br/wp-content/uploads/2015/03/1-por_ser_menina_resumoexecutivo2014.pdf

[8] https://nacoesunidas.org/trabalho-domestico-ocupa-40-mais-tempo-das-meninas-no-mundo-diz-unicef/

[9] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/03/27/apos-pedido-de-cientistas-cnpq-ira-incluir-periodo-de-licenca-maternidade-e-paternidade-no-curriculo-lattes.ghtml

[10] https://www.cafehistoria.com.br/impacto-do-novo-coronavirus-na-produtividade-das-mulheres/

Imagem de capa http://www.studentshow.com/gallery/54111055/Ladybug-Women-in-STEM