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Da bacia do Araripe para às mãos de um colonizador
2020 foi marcado por alguns dos maiores escândalos dentro do ramo da paleontologia no Brasil. Um deles foi o caso do fóssil Ubirajara Jubatus, espécie que viveu há cerca de 110 milhões de anos no passado, encontrado na Bacia do Araripe, região situada entre Ceará, Pernambuco e Piauí. Descoberto por um grupo de cientistas liderados pela Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, se destaca por possuir duas estruturas rígidas feitas de queratina em cada lado de seus ombros.
Porém, pesquisadores dizem que as investigações do fóssil não teriam sido realizadas de acordo com a legislação do país. De acordo com a Portaria Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) nº 55. de 14 de março de 1990, materiais e dados científicos do Brasil só podem ser estudados fora do país com algumas condições, dentre elas: (1) participação de ao menos um cientista brasileiro na pesquisa em questão: e (2) a devolução do material ao território brasileiro. E de acordo com o Decreto-Lei nº 4.146 do presidente Getúlio Vargas, de 4 de março de 1942, a movimentação de fósseis para fora do território nacional deve ser validada pelo governo federal.
Isso gerou indignação entre os pesquisadores brasileiros, que levantaram a hashtag no Twitter #UbirajaraBelongsToBR (#UbirajaraPertenceAoBR).
A paleontóloga Aline Ghilardi comentou sobre o caso e o nome dado ao fóssil no Twitter “Ubirajara é um romance do escritor brasileiro José de Alencar publicado em 1874, onde seu personagem principal é um índio brasileito, que ainda não se corrompeu perante a cultura europeia. Engraçado, certo? Não! Eles estão tirando sarro de nós!” diz Aline.
Um dos autores do estudo do fóssil, David Martill, já era investigado pela Polícia Federal por conta de um caso similar ocorrido em 2015 com o desvio de um fóssil de cobra com patas. Na época, segundo o chefe da divisão de proteção de depósitos fossilíferos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Felipe Chaves, garante que não foi concedida permissão para a saída desse objeto desde que o departamento tem essa atribuição (2006).
"A peça saiu do Brasil sem a anuência do DNPM", garante Chaves. Mesmo se tivesse saído do país antes de 2006, dificilmente seria por meios legais, já que, desde 1942, a comercialização de fósseis é restrita por lei por serem considerados bens da União. "Acreditamos que a saída tenha sido ilícita, por descaminho", afirma.
Em matéria escrita para o Estado de São Paulo no dia 24 de julho de 2015, o jornalista pergunta para David se ele buscou contato com algum pesquisador brasileiro para trabalhar com o fóssil junto a ele, o que ele respondeu:
“Na época em que comecei a trabalhar no fóssil, não conhecia nenhum brasileiro que trabalhasse com cobras, embora agora saiba que existe um cara chamado Zahler (Hussam Zaher, paleonto herpetologista, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo). Mas que diferença isso faria? Quer dizer, você quer que eu também tenha uma pessoa negra no time por razões étnicas, e um aleijado e uma mulher, e talvez um homossexual também, só para ter um pouco de equilíbrio geral? Escolhi trabalhar com Nick Longrich porque sei que ele é o melhor filogeneticista do ramo. Ele é um cidadão americano (EUA). Para mim, nacionalidade (ou sexualidade) não é um problema. Se você convidar pessoas porque são brasileiras, as pessoas vão pensar que todo autor brasileiro em um artigo científico está lá porque é brasileiro e não porque é um cientista inteligente. O token brasileiro” respondeu David ao jornalista.
A pesquisa do fóssil Ubirajara tinha sido publicada na revista Cretaceous Research, que suspendeu a mesma devido a demanda dos pesquisadores brasileiros.
"A Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) enviou carta para a revista perguntando se havia outra documentação além da autorização do DNPM. Afirmamos que, se a documentação do CNPq não for apresentada, consideramos que o fóssil saiu ilegalmente do país", disse o paleontólogo Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP) ex-membro da diretoria da SBP e atual consulta da instituição ao site SputnikNews no dia 23 de dezembro de 2020.
Eduardo Koutsoukos, brasileiro editor da revista Cretaceous Research, disse ao site da Sputnik Brasil que o artigo "só foi considerado pela revista por ter atendido aos requisitos necessários para publicação, conforme as normas, ou seja, depósito formal do material estudado em uma instituição de pesquisa pública de renome, e cuja coleta e translado tenha ocorrido de forma legal, o que os autores atestaram no manuscrito pela documentação do Departamento Nacional da Produção Mineral".
Opinião
O caso do Ubirajara demonstra o total desprezo de pesquisadores europeus que visam o país apenas como um lugar para saquearem em nome da ciência, uma visão colonial do que antes poderia ser uma parceria de pesquisa muito promissora para diversos países. Aviso-os que o tempo dos conquistadores já passou, e não vamos ficar calados enquanto nossas riquezas são roubadas por traficantes de fósseis.
O trabalho de um paleontólogo
Para falar mais sobre como é ser paleontólogo no Brasil, conversamos com Tainá Constância. Formada em Ciências Biológicas na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), estagiou no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA), onde começou a trabalhar com paleontologia.
Cerveja favorita: Pilsen
Tainá Constância, preparação de materiais fósseis no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA) - São Luís/MA / Divulgação
Pint Of Science: Tainá, como foi entrar para a paleontologia?
Então, eu cursei Ciências Biológicas na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e no final do curso fiz um estágio no Centro de Pesquisa de História Natural e Arqueologia do Maranhão (CPHNAMA), foi lá que comecei, propriamente, a trabalhar com a Paleontologia para além da teoria já vista anteriormente em sala de aula. E o trabalho me encantou, lá lidei com triagem de materiais fósseis, acompanhei o trabalho de atendimento ao público e de curadoria da coleção, tive o primeiro contato com a preparação de materiais fósseis e diversos trabalhos técnicos que permeiam a área. Quando o estágio finalizou, simplesmente não consegui mais abandonar a Paleontologia, então pedi para continuar trabalhando no museu e, posteriormente, conversei com o professor responsável da instituição, o Prof. Dr. Manuel Alfredo Medeiros, sobre o meu interesse em seguir na área durante a pós-graduação. Atualmente, sou aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Evolução e Diversidade, na Universidade Federal do ABC (UFABC) e atuo na área da Paleontologia, sob orientação da Profa. Dra. Fabiana Costa Nunes e integro a equipe de pesquisa do Laboratório de Paleontologia de Vertebrados e Comportamento Animal (LAPC).
Pint of Science: O que te fez apaixonar pelos fósseis, exatamente?
Desde criança sempre gostei da natureza, do meio ambiente, dos bichos como um todo e sempre tive em mente que gostaria de trabalhar com aquilo. Então também tive bonequinhos de diversos animais, tanto viventes como dos famosos dinossauros. Mas, foi somente ao lidar com os fósseis durante a graduação que a vontade de ser paleontóloga aflorou. Achei incrível que diversas informações acerca de um ser vivo que existiu no nosso planeta há mais de 100 milhões de anos, por exemplo, pudesse ser acessada nos dias de hoje. Poder conhecer a diversidade de formas de vidas que já passaram por aqui, as mudanças que ocorreram ao longo do tempo e ter essa perspectiva é fascinante!
Pint of Science: E como você enxerga o campo aqui no Brasil?
No Brasil, notamos grande interesse na carreira de paleontólogo, um número maior de pessoas têm se interessado pela área. Em contrapartida, os investimentos não têm sido dos melhores. Recentemente, acompanhamos uma série de cortes no setor da educação que acabaram por prejudicar o trabalho de pesquisadores como um todo, tanto por parte de alunos quanto de professores. Aqui, a carreira de paleontologia é geralmente vinculada à uma universidade, ou seja, necessariamente o caminho será pela pós-graduação. Há baixo investimento na Ciência, uma situação a qual, infelizmente, não parece estar indo rumo à melhoria, onde constatamos que nem sempre todos são contemplados a fim de se aprimorarem profissionalmente e conseguirem desenvolver suas pesquisas com maior apoio.
Além disso, a falta de incentivo e valorização da ciência por parte dos governantes resulta em baixo orçamento (ou inexistente), que leva também a um desconhecimento por grande parte da população sobre o que é e o que faz um paleontólogo, bem como a não compreensão sobre a importância da sua atuação no que diz respeito ao patrimônio fossilífero.
Muitas vezes, a gente se depara diante da situação de não termos dinheiro suficiente para conduzir uma pesquisa, ou mesmo para resgatar algum espécime fóssil que foi encontrado, e que poderá se perder. Vale lembrar que há situações em que professores e alunos usam do próprio dinheiro para arcar com os custos de pesquisas.
Um investimento correto na educação, ciência e cultura poderia, por exemplo, fazer com que a população pudesse reconhecer os fósseis como um bem da união (patrimônio de todos) e, consequentemente, desenvolver nas pessoas essa vontade de preservar também esses materiais. O Brasil é o cenário de alguns fósseis em excelente estado de preservação, que são de grande importância para a melhor compreensão de diversas linhagens evolutivas. Ou seja, valorizar a nossa área é valorizar também o conhecimento a respeito da vida na Terra, sua história, relações e mudanças ao longo do tempo.
Pint of Science: Como você vê essa questão do tráfico de fósseis?
Olha, de acordo com a legislação vigente no nosso país, a comercialização de fósseis é uma atividade ilegal. E isso traz de volta à questão anterior, que um incentivo à população poderia levar à conscientização do valor que esses materiais têm para o país e, consequentemente, para a própria população que poderia repreender atividades do tipo.
Nós, como pesquisadores, temos o dever de disseminar a ideia de que o patrimônio fóssil vale muito mais em solo brasileiro, do que se for vendido. A população local da qual o material foi retirado perde, a pesquisa brasileira perde e as pessoas que teriam acesso futuro ao material e à pesquisa também perdem. É parte do nosso conhecimento que se perde quando um fóssil é contrabandeado para outro país.
Existem materiais que há muitos anos foram contrabandeados e nunca foram repatriados, esses materiais nunca poderão ser vistos pela população brasileira. Eu vejo que atualmente há um esforço conjunto entre diversos pesquisadores da área para impedir que o tráfico de fóssil aconteça e para que as devidas providências sejam tomadas quando isso vem a acontecer. Claro, mesmo diante dos esforços de alguns pesquisadores e moradores de comunidades locais, ainda assim o apoio de governantes é indispensável para que a fiscalização seja rigorosa e que essa situação não aconteça.
Os fósseis podem levar o turismo a regiões que hoje são abandonadas pelo poder público. E inclusive movimentar o comércio local.
Tainá Constância, campo realizado em Alfredo Marcondes - SP / Divulgação
Pint of Science: Você tem alguma história que aconteceu com você em campo?
Bom, campos são sempre locais prováveis de acontecer alguma história engraçada ou no mínimo memorável. Um dos campos que mais gostei de fazer e que rendeu boas lembranças foi o que realizamos em Alfredo Marcondes (SP), com a equipe do Laboratório de Paleontologia de Vertebrados e Comportamento Animal (LAPC), em colaboração com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O campo em si foi bem produtivo, encontramos diversos materiais e a equipe era maravilhosa. Eu, particularmente, quase caí do barranco na emoção de encontrar um material; pisei numa trilha de cocô de vaca porque estava concentrada na filmagem do vídeo alheio; rolei na grama com meu companheiro de pesquisa (e de vida); a equipe recebeu a visita de umas vaquinhas que iam pastar pertinho do local de coleta e, eventualmente, tivemos que sair correndo fugindo das vacas e um ou outro sortudo deve ter rasgado as calças no caminho passando pelos arames. Foi um dos melhores campos que já fiz, sem dúvidas.
Pint of Science: Como você vê o futuro da paleontologia no Brasil? O que esperar?
No momento, a perspectiva para quem vive de pesquisa não é das melhores, a situação já estava complicada antes mesmo da pandemia acontecer... Vimos uma série de cortes ocorrendo, além das bolsas e outros financiamentos que não sofrem reajuste há cerca de sete anos, ocorreu também a redução nos investimentos (que já não eram os ideais). Creio que nos próximos anos a situação permanecerá complicada e irá demorar até que haja uma melhora. Mas, fica aqui uma mensagem: viemos de muito longe e este não é o momento de desistir e fraquejar! Devemos erguer nossas cabeças e exigir melhorias para o meio científico e educacional do nosso país. Esse é o momento de unirmos forças, seguimos mais fortes quando estamos juntos.
Bem, quanto à parte boa, diversos pesquisadores brasileiros estão encabeçando uma série de estudos do campo da Paleontologia neste momento. O conhecimento a respeito da nossa pré-história tem se expandido cada vez mais. Sem querer dar nenhum spoiler, mas, fiquem de olho! Pois novas publicações serão divulgadas nos próximos tempos, colocando a paleontologia brasileira novamente em destaque mundial.
Pint of Science: Como você enxerga a participação de mulheres e minorias sociais nesse campo de pesquisa?
Eu vejo que a participação de mulheres e minorias sociais têm crescido na Paleontologia, a "paleo" está deixando de ser uma área ocupada apenas por homens brancos e ricos. Acho essa mudança necessária e urgente, não só para a Ciência, de um modo geral, mas para todas as áreas da sociedade. É lindo ver em eventos da área uma grande diversidade de pessoas interessadas pelo tema, e isso faz com que mais pessoas se identifiquem também e não desistam de seguir na área por “não se enxergar dentro dela”. A Paleontologia (e qualquer ambiente acadêmico) é para ser um lugar de todos, de quem quiser, o pré-requisito é se interessar pelo assunto. Todos podem ser igualmente competentes e trazer boas contribuições para uma pesquisa.
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Texto escrito por Victor Hidalgo. Jornalista formado pela Universidade São Judas Tadeu e parte do Jornal Metamorfose. Host e editor do podcast Rádio Metamorfose e jornalista freelancer. Apreciador de batidas de limão.
Imagem de capa: Arte de Art Doragoon / Reprodução